Bernardo Tavares é o convidado de fevereiro da rúbrica – “No Interior do Jogo”. Natural de Proença-a-Nova, o treinador de futebol passou pela formação dos “três grandes” de Portugal e estagiou em vários clubes, como Paços de Ferreira, de Paulo Fonseca, Sporting CP, de Paulo Bento, Real Madrid, de Carlos Queiroz e José Peseiro, e União de Leiria, de José Mourinho.
No estrangeiro, acumula várias experiências, por diversos países – Bahrein, Omã, Tanzânia, Maldivas, Macau, Índia, Finlândia e está há quatro épocas na Indonésia -, tendo já conquistado Campeonatos Nacionais e realizado boas prestações na Liga dos Campeões Asiática.
Na segunda parte da conversa com a AFCB, Bernardo Tavares aborda as várias aventuras nos diferentes países, conta histórias sobre esse percurso e deixa ainda um conselho aos mais novos.
AFCB: Em 2013/2014, aceitas a primeira aventura no estrangeiro e logo no Bahrein. Como surgiu este convite e o que te fez sair do nosso país?
BT: Em 2013, já tinha o Nível IV UEFA Pro e já tinha muito bem definido o que é que queria e não queria. Em Portugal, os projetos que me apareciam eram da II Liga e eram iguais ou piores que o Belenenses. Como queria algo melhor, através de uns contactos, acabei por ir um bocadinho com a mala às costas. Fizeram-me uma espécie de uma carta de intenção de contrato e lá fui eu. E tenho uma história engraçadíssima na viagem para o Bahrein. Fiz Lisboa-Frankfurt, tinha de pernoitar na Alemanha e supostamente era para lá estar uma pessoa à minha espera, que não estava. O voo atrasou e tive de pôr o meu alemão a funcionar, que era básico, mas lá consegui desenrascar-me. Tive de me levantar quase de madrugada, dormi duas ou três horas, para ir para outro terminal, porque Frankfurt é enorme em termos de aeroporto, para apanhar o avião. Venho com a pessoa, que me levou para o aeroporto, a falar um inglês arranhado. Quando chego ao balcão, percebo que não tinha o passaporte. Pensei logo que ia perder o avião. De repente vejo o senhor que me deixou a dizer: “Então você é português e não me dizia nada?” Tinha deixado o passaporte no carro e, curiosamente, o senhor era da zona do Carregado e ainda estivemos a falar um bocado. Quando chego ao Bahrein, no dia mais quente de sempre, 53 graus, vou a sair do avião e não conseguia respirar. Entretanto, estava lá um diretor à minha espera, com o ar condicionado a coisa melhorou e, passados dois ou três dias, já estava completamente adaptado.
Levava a minha pré-época concebida na cabeça, chego lá e tive que “rasgar os livros”. Chego a um país onde há xiitas e sunitas. Tinha de treinar àquela hora, porque mais tarde já não podia treinar, tinha de parar o treino para eles rezarem - os xiitas rezavam para um lado e os sunitas rezavam para o outro e não podia ser à mesma hora. Ou seja, tive de alterar logo ali o calendário de treinos e, mais tarde, comecei a reparar que os xiitas não passavam a bola aos sunitas. Mas o que é que se passa? E atenção, o Bahrein, apesar de ser um país pequeno, a nível de futebol é dos melhores países da Ásia, tem muito bons jogadores. Aquelas duas primeiras semanas tive de criar muitos exercícios de coesão de grupo, para eles perceberem que isto é um desporto coletivo e que temos de remar para o mesmo lado para atingir os nossos objetivos. Aprendi rapidamente algumas palavras árabes, porque muitas vezes o tradutor não estava atento e focado e era um problema. Na semana a seguir já falava os números, as cores e já me safava nos treinos. Foi o melhor que fiz, porque acelerou a minha adaptação e até o clube já queria que assinasse por dois anos, mas insisti em que fosse apenas uma época. E correu muito bem e só não fiquei, porque acabei por ir para o Tirsense.
Como fiz um bom trabalho lá, houve jogadores que falaram de mim e acabo por ir para o antigo campeão de Omã, para jogar a Liga dos Campeões e a AFC Cup. Só que apanhei o clube numa fase em que os 16 melhores jogadores saíram e estavam em último lugar com quatro pontos em 12 jogos. Conseguimos passar de quatro pontos e último lugar para 7º classificado. E posso dizer que se houvesse mais três jogos, ainda chegávamos aos lugares de competições internacionais. Fui buscar muitos jogadores das camadas jovens, que ainda hoje são jogadores da Seleção do Omã.

AFCB: Após esta saída, já passaste por diversos países como o Omã, Tanzânia, Maldivas, Macau, Índia, Finlândia. São países muito diferentes do nosso, cultural e futebolisticamente. Que realidades encontraste nestas experiências?
BT: Estive para entrar na Europa, tive propostas de alguns mercados, como a Grécia, Chipre e Portugal, mas queria um bom clube, de I ou II Liga. Isso não aconteceu e, entretanto, acabei por ir para o Tourizense, em que fui o quarto treinador e éramos a equipa mais jovem das 80 equipas do CNS, com uma média de idades 18 anos e meio. Acho que foi a época em que fui o treinador mais inventor. E, atualmente, esses jogadores, que conseguiram a manutenção, ninguém joga Futebol já. E eram novos. Fizemos um milagre todos juntos.
A seguir a isso, fui para a Tanzânia, num projeto engraçado, em que gostei muito de trabalhar lá. Fizemos uma primeira volta espetacular, fomos a única equipa a ganhar a um dos gigantes. É uma realidade com milhões de habitantes, cinco ou seis jornais diários, rádios, televisões, são malucos pelo futebol, mas vivem a festa do jogo. Os estádios enchem com música e é uma verdadeira festa. Gostei muito de estar na Tanzânia, peguei numa equipa que era a primeira vez que estava I Liga, através de um empresário americano, que também tinha passaporte da Tanzânia, e o objetivo era apostar nos jogadores jovens e acabámos por fazer um bom trabalho. A meio da época, estávamos muito bem classificados, e o dono veio dizer que não tinha mais dinheiro e era preciso reduzir salários. Saímos do clube em dezembro e, em janeiro, já estava a assinar por uma equipa das Maldivas.
[Nas Maldivas] Foi bom, acho que ganhámos tudo o que havia para ganhar, uma experiência espetacular, só que fui para lá para trabalhar e não fui passar férias, como muita gente pode pensar. Infelizmente não tive muita oportunidade de férias porque queria fazer um trabalho tão bom, que se destacasse, como destacou, porque foi esse trabalho das Maldivas que me abriu as portas do Sudoeste Asiático todo. Neste momento posso dizer que tenho ofertas de clubes da Indonésia, da Tailândia, da Malásia e das Maldivas. Fiz um excelente trabalho, uma vez que, praticamente com os mesmos jogadores da última temporada, ficaram em 4ºlugar, ganhámos todas as competições internas, fizemos uma boa campanha na FC Cup.
A seguir às Maldivas, fui para Macau. Um projeto engraçado, fizemos a melhor época de sempre, ganhámos o campeonato sem uma única derrota, só com um empate. Levámos, pela primeira vez, uma equipa de Macau a apurar-se para a Fase de Grupos da AFC Cup e, nos seis jogos, conseguimos ganhar quatro. Para uma equipa de Macau, é espetacular. Conseguimos juntos fazer um trabalho espetacular, com grandes dinâmicas, quer em termos defensivos, quer em termos ofensivos, e houve também a arte e o engenho de motivar aquela malta toda - não é fácil, são muitas culturas diferentes. Os únicos jogos internacionais que perdemos foi contra o vencedor da AFC Cup, o 25 de Abril, que é a Seleção da Coreia do Norte. Devo ser o único treinador português que foi duas vezes, no mesmo ano, à Coreia do Norte, em que quando chegámos temos uma receção de metralhadora. Na primeira partida, vencemos 3x2 contra a segunda melhor equipa da Coreia do Norte e o guia só me dizia: “atenção, já ninguém ganha aqui há mais de 40 anos”. Foi um clima de terror do estádio para o hotel e do hotel para o aeroporto.
É engraçado porque, dois meses mais tarde, voltámos lá, para defrontar o 25 de Abril, fomos para outro hotel e havia um jornal em inglês, em que dizia que tínhamos perdido o jogo anterior, por 2-0. Ou seja, eles alteravam as notícias todas. Tínhamos ganho 3-2 e aquele jornal dizia exatamente o oposto. Aquilo era muito controlado, as pessoas não se vestiam com cores vivas, parecia que andávamos um século para trás. Eles, fisicamente, são uma coisa do outro mundo, são uma nação muito militar em tudo o que fazem. No segundo jogo, perdemos muito bem contra uma superequipa, num estádio com 140 mil pessoas. Costumo dizer que empatámos 8-0. Foi muito mau, porque só levámos 12 jogadores aptos. Houve muitos jogadores que, ou por lesões, ou por várias situações, não puderam ir. Nesta segunda vez, o guia que estava connosco, dizia várias vezes “vingança” em inglês. Então, nesse ano, a Seleção Nacional tinha ganho 7-0 à Coreia do Norte e, naquele momento, como tinham vencido, por 8-0, a um treinador português, sentiam que estava vingado. São coisas inacreditáveis.
Após Macau, seguiu-se a Índia, que também tem muita gente. Ganhámos a competição da Goa League, que é semelhante a um estadual. Foi outro projeto engraçado, porque fui para Goa, em que se falava português e havia ruas com nome em português, tal como em Macau. Gostei muito de estar em Goa, fiquei muito bem instalado, perto da praia, e fizemos um bom trabalho. Depois meteu-se o Covid e tive de ir embora. Apanhei o último voo disponível, antes de fecharem os aeroportos.
Após o período do Covid, tive várias ofertas, quer para a Ásia, quer para a África, quer na Europa, e acabei por ir para a Finlândia. Fui para um dos clubes mais antigos do país – HIFK Helsinki -, da capital, mas a modalidade de eleição deles é o Hóquei no Gelo, não é o Futebol. Mesmo assim, fizemos um brilharete na Taça da Liga, chegámos às meias-finais, coisa que já não acontecia há 70 anos. Ainda assim, houve algumas complicações. Lembro-me que queria levar alguns jogadores e disseram-me que sim no início e, mias tarde, contrataram cinco africanos e dizem-me que já não há orçamento para os outros jogadores. Tinha uma equipa muito engraçada, só que tive de fechar a porta e vir-me embora, porque não estava para aquilo. O treinador tem de ganhar ou, pelo menos, sentir que está a fazer um projeto para evoluir.
AFCB: Atualmente, estás há quatro épocas na Indonésia. Como está a ser esta experiência?
É engraçado que, na viagem, quando venho da Finlândia, já tinha o PSM Makassar em cima de mim e outros clubes da Indonésia. Atenção que estamos a falar de país com 280 milhões de habitantes. O clube em que estou tem 20 milhões de adeptos. E o clube já não era campeão há 23 anos. E na época anterior à minha chegada, estiveram para descer de divisão. É dos poucos clubes da Liga que nunca desceu de divisão, é o mais antigo da Indonésia, tem 109 anos de existência. Quando cheguei não pude contratar um único jogador da I Liga, não havia dinheiro e fizemos um scouting espetacular na II Liga, nas academias e fomos Campeões, chegámos à Final Ásia – competição internacional -, algo que nunca nenhuma equipa da Indonésia conseguiu e assinei até 2026. Os melhores jogadores acabaram todos por sair e, mesmo assim, na competição asiática, no ano anterior, fomos a melhor equipa da Indonésia, novamente, com mais pontos, comparando com outras equipas que são poderosíssimas, que pagam milhões aos jogadores – já estiveram cá treinadores de grande qualidade internacional e eu, de Castelo Branco, consegui fazer-lhes frente.
Esta época, perdemos muitos jogadores locais e estrangeiros, orçamento a um quinto comparando com a minha primeira época e estamos há duas temporadas sem poder jogar no nosso estádio. Até nos jogos em casa temos de viajar de avião. E isso faz toda a diferença. Na minha primeira época, jogávamos em casa, com o estádio sempre cheio. Quando fomos campeões, após um jejum de 23 anos, foi uma loucura e um fanatismo incríveis - pintaram casas com o meu retrato e com o retrato da equipa, tratam-me como Deus e sou uma pessoa normal, de carne e osso. Neste momento, estamos a conseguir os nossos objetivos, que é manter-nos na Liga, perdemos novamente muitos jogadores, estamos novamente a fazer um feito, foi chegar às meias-finais da Ásia Cup, ganhámos o último jogo, no dia 8 de janeiro, ao líder da Liga do Vietnam e penso, atualmente, é muito difícil fazer melhor.
Tenho contrato com o clube, por mais uma época, mas no Futebol, nunca se sabe o futuro. Tenho muitas ofertas, quer na Indonésia, quer de outros mercados, mas estou satisfeito, as pessoas gostam de mim, somos a equipa mais jovem da Liga, temos uma média de idades de 24 anos e com orçamento menor. Desde o primeiro momento que a nossa ideia é valorizar jogadores locais e sou o treinador da Indonésia, neste momento, que já meteu mais jogadores na Seleção Nacional da Indonésia. Há atitudes que valem mais que qualquer título. No ano passado, um dos jogadores que saiu, foi pai e deu o nome de Tavares à criança. Antigamente havia o Pedro Álvares Cabral e o Vasco da Gama e, atualmente, há um treinador que consegue, através do seu trabalho, como forma de reconhecimento, que um jogador coloque Tavares no nome do filho. Isso, para mim, é melhor que qualquer troféu, porque era um miúdo que ninguém acreditava e apostei nele. E saiu para ganhar oito vezes mais do que aquilo que podíamos pagar.

AFCB: Que objetivos ainda tens por atingir no Futebol? Queres voltar a Portugal?
BT: Além do aspeto desportivo, há também o lado emocional, de ajudar jogadores e ver o reconhecimento deles, é a maior gratidão. Acho que tenho jeito para isto, senão não conseguia enganar tanta gente, durante tanto tempo. Sou feliz a fazer aquilo que gosto. A única infelicidade é estar longe da família, dos amigos e do meu país. Gostava de voltar a Portugal, mas é preciso haver uma oportunidade, uma simbiose, porque sozinho não faço nada. Não tenho empresário em Portugal e, para entrar, é preciso conhecimento, não basta o trabalho por si só. Tenho mais currículo na Ásia que em Portugal e, sem empresário, é difícil entrar na I Liga.
AFCB: Que mensagem gostavas de deixar para os jovens do distrito que, como tu anteriormente, sonham ser jogadores ou treinadores?
BT: Atualmente, já não existe o isolamento como antigamente. Com o desenvolvimento tecnológico, estamos numa aldeia global e, rapidamente, as notícias espalham-se e chegam a todo o lado. É preciso ter foco no objetivo e trabalhar. Se temos um sonho, temos de correr atrás dele, como em qualquer área profissional. Quando fazemos aquilo que gostamos, estamos sempre motivados. É o meu caso. Apesar de estar longe, faço aquilo que gosto e, neste país, sou reconhecido como um bom treinador, num país com 280 milhões de habitantes e com uma paixão enorme pelo Futebol. Se têm sonhos, lutem por eles, não desistam à primeira contrariedade e sejam exigentes com vocês próprios. Não se acomodem, porque nesse momento, há alguém que está a lutar pelo mesmo objetivo que nós e passa-nos à frente. Não desistam, porque correr atrás do que gostamos pode dar-nos uma satisfação grande.