Bernardo Tavares é o convidado de fevereiro da rúbrica – “No Interior do Jogo”. Natural de Proença-a-Nova, o treinador de futebol passou pela formação dos “três grandes” de Portugal e estagiou em vários clubes, como Paços de Ferreira, de Paulo Fonseca, Sporting CP, de Paulo Bento, Real Madrid, de Carlos Queiroz e José Peseiro, e União de Leiria, de José Mourinho.
No estrangeiro, acumula várias experiências, por diversos países – Bahrein, Omã, Tanzânia, Maldivas, Macau, Índia, Finlândia e está há quatro épocas na Indonésia -, tendo já conquistado Campeonatos Nacionais e realizado boas prestações na Liga dos Campeões Asiática.
A AFCB esteve à conversa com Bernardo Tavares, ficando a conhecer melhor o seu percurso inicial no mundo do Futebol, os muitos quilómetros feitos na estrada e as experiências em território nacional.
AFCB: És natural de Proença-a-Nova. Como foi a infância? Como surgiu a ligação ao Futebol?
BT: Desde que me lembro, ia para a Escola Primária sempre com uma bola debaixo do braço. Não havia aniversário ou Natal que não recebesse uma bola, já nem estava feliz. No bairro onde vivia, em Proença-a-Nova, era dos miúdos mais novos e queria era jogar com os mais velhos. Muitas vezes a diferença de idades era grande, mas nunca dava a peladinha como perdida. Eram outros tempos, em que fazíamos as balizas com duas pedras, numa estrada que nem era alcatroada. Uns anos mais tarde, fizemos uma baliza num muro, que ainda hoje existe e a baliza ainda lá está, já meio apagada. Lembro-me, quando já estava no Secundário, que havia dois ou três miúdos mais novos no bairro, e ensinei-os a jogar Futebol.
Foi, nesta altura, que começou um bocadinho o prazer pelo ensinar Futebol, que na altura era uma brincadeira para mim, jamais me veria como treinador. Mas, desde pequenino, que sempre gostei de ver e jogar Futebol. Lembro-me que os meus avós tinham uma panificadora e, quando saía da escola, ia rapidamente ajudá-los e os meus pais nas lides domésticas e na agrária e, só me permitiam ir ao treino, se fizesse tudo. Quando voltava do treino à noite, ainda tinha de fazer os trabalhos de casa. Tinha sempre de fazer as minhas tarefas diárias para poder ir treinar e, portanto, foi sempre algo que gostei muito. Recordo-me, na altura, quando estava nos juniores da ADC Proença-a-Nova, em que cheguei a ser capitão, o treinador trabalhava numa fábrica, por vezes, não chegava a tempo e não conseguia dar o treino e era eu que assumia a sessão, tendo até alguns colegas que eram mais velhos. Isto não aconteceu muitas vezes, mas acabou por despertar em mim o bicho de treinador. Tentava fazer mais ou menos aquilo que o mister tinha dito para fazer, mas já queria colocar o meu cunho pessoal. Não estar sempre a fazer as mesmas coisas, porque eles também gostavam de coisas novas e também porque muitas vezes era chamado para treinar nos seniores e, naquela altura, a equipa da ADC Proença-a-Nova estava na III Divisão, passaram vários treinadores e acabei por absorver o que é que cada um ia fazendo e levava para a “minha equipa” de juniores.
AFCB: O Futebol foi o único desporto federado que praticaste? Jogaste até que idade?
BT: Quando estava nos seniores da ADC Proença-a-Nova já treinava também e, como tal, tive de fazer uma escolha. Deixei de jogar em 2003, com 23 anos, numa altura em que já estava em vários projetos como treinador. Na altura, já era coordenador das camadas jovens do Alcobaça, treinava dois escalões e ainda era adjunto nos seniores. Também estava a trabalhar no SL Benfica. Era trabalhador-estudante, estava a concluir a Licenciatura em Treino Desportivo de Alto Rendimento de futebol, na Universidade de Rio Maior, e já era muita coisa.
Nesta fase também tinha uma Escolinha de Futebol em Proença-a-Nova, que ainda esteve aberta de 2001 a 2013, com muitos miúdos, também tive uma Escola de Futsal Feminino … Era uma pessoa dedicada ao Desporto, percorri muitos quilómetros e era muito desgastante. Jogava na ADC Proença-a-Nova e treinava à sexta-feira, em que aproveitava também para dar treino na minha Escola de Futebol. No sábado de manhã, voltava para Alcobaça, porque tinha jogos da formação o dia todo. No domingo, regressava a Proença-a-Nova para jogar e, nesse mesmo dia, tinha de viajar novamente para Alcobaça, uma vez que segunda-feira tinha de trabalhar ou tinha aulas…. Foi um ritmo alucinante. Saiu-me do corpo, mas fazia algo que gostava.
Em 2006, também joguei Futsal. Quando fui para o RCP, que é de Ribafria, que fica perto de Alcobaça, fui como jogador e deixei o Alcobaça. Nessa altura, 2006/2007, com cerca de 27 ou 28 anos, além de estar no futebol sénior, tinha camadas jovens e ainda estava no Futsal. Já tinha terminado o curso, dava algumas AEC’s, dava também geriatria aos idosos, geriatria com acordeão, e o meu dia, para teres uma noção, começava às 08:00 da manhã e terminava sempre muito tarde. Tive de optar por deixar o Alcobaça – ainda conciliei uma ou duas épocas – e fiquei no Futsal como jogado/treinador. Foi, no entanto, a minha última temporada e, desde então, passei a dedicar-me apenas ao Futebol.

AFCB: Realizaste estágios em vários clubes – Paços de Ferreira, Sporting CP, Real Madrid, União Leiria e na Federação Portuguesa de Futebol (FPF). Como foram estas experiências?
BT: Podemos começar pelo fim. Na FPF foram os anos em que estive em Rio Maior e foram muitos. A FPF tinha um protocolo com a Desmor, que é a empresa de Rio Maior, que trata do Centro de Estágios, e também com alguns conhecimentos, com os vários Treinadores Nacionais, acabava por poder estagiar com eles. Foram vários anos em que “descasquei” treinos desde a Seleção Nacional Sub-21, ainda estive com o Rui Jorge, para baixo – acompanhei os treinos todos.
A experiência no Real Madrid foi em 2004, na altura foi através do treinador José Peseiro, que era meu professor em Rio Maior, e era adjunto do professor Carlos Queiroz. Foi naquela altura que o Real Madrid tinha uma equipa de galácticos, em que tinha o Figo Zidane, David Beckham, Ronaldo, o Roberto Carlos…. Eram tantas estrelas juntas que aquilo dava um gozo enorme levantar-me de madrugada, apanhar aqueles transportes todos para ir ver os treinos. Foi uma experiência fantástica. Além dos Seniores, também conheci o Coordenador das Camadas Jovens, o que me permitiu observar todos os treinos das camadas jovens, desde os Juniores até aos mais pequenos. Aquele mês que lá estive, passava o tempo a ver futebol, desde manhã à noite, a ver as metodologias que eles utilizavam, quer para os graúdos, quer para os miúdos, e foi um catalisador enorme, uma vez que percebi o que é que estávamos a fazer bem e mal em Portugal. Na altura já tinha estado no SL Benfica e no União de Leiria.
Em Leiria, com o José Mourinho, nunca imaginava que ia ser quem é, mas já na altura, pela sua comunicação, pela sua forma de estar com os jogadores e até pelo processo de treino, havia uma diferença muito grande comparando com outros sítios em que tive a felicidade de poder estagiar.
Estas experiências todas permitiram-me ver outros métodos de trabalho, abordagens, às vezes nem é só o treino, mas a forma como o treinador lida com o grupo de trabalho, como lidera, por exemplo. Conheço o Paulo Fonseca já há muitos anos, tirámos o nível III e IV juntos. É curioso que, quando estive no Paços de Ferreira com ele, também lá estava um colega que agora é um senhor com S grande, o Abel Ferreira, que está no Brasil. Quando estávamos lá a assistir ao treino e a colocar questões ao Paulo Fonseca, o Abel virava-se para mim, meio de gozo, e dizia: “ó mestre, então o que é que tu achas disto?”. E, atualmente, dá-me vontade de lhe fazer a mesma coisa (risos). O Abel Ferreira é gente boa e acompanho-o à distância e desejo-lhe o melhor.
AFCB: Passas pela formação dos três “grandes” em Portugal – SL Benfica, Sporting CP e FC Porto. Creio até que a tua primeira experiência é no SL Benfica. Como surgiram estas oportunidades?
BT: O SL Benfica foi através do estágio do curso. No meu primeiro ano, fui um dos melhores alunos, eles precisavam de duas pessoas e foram escolhidos os dois melhores alunos. Mais tarde, até fui solicitado para continuar e fiquei até ao final da época.
Nessa altura, o Sertanense FC, que estava na II Divisão B, em 2001/2002, tinha o professor Kikas como treinador e queria-me como adjunto dele e que assumisse os Juniores. Mas ainda estava a estudar e, quando fiz as contas, percebi que não me compensava financeiramente e acabei por ir para o Alcobaça, que era mais perto. E fiz um projeto muito engraçado. Além de ser melhor, em termos salariais, podia trabalhar logo com a equipa profissional, ser Coordenador de Formação, trabalhava no Futebol 11 e 7 e acredito que existe um Alcobaça antes de entrar e outro quando sai. Durante estes anos, fomos a vários finais, ganhámos ali a nível distrital muita coisa, pusemos equipas a nível nacional das camadas jovens, a nossa equipa sénior nunca desceu nesses anos e, infelizmente, coincidência ou não, quando fui embora, acabou por descer logo nesse ano a seguir. É o futebol, são coincidências, mas tenho um carinho muito especial pelo Alcobaça.
Tive perto de ser Coordenador da Associação de Futebol de Leiria, antes de sair do Alcobaça, mas depois ainda bem que não fui, porque assim percebi que tinha de sair do Alcobaça. Quando lá estava, ainda fui scout do FC Porto em vários distritos – Leiria, Santarém e Castelo Branco. Andava por todo o país a “descascar” e a ver Futebol.
No Sporting CP, foi quando larguei, de vez, o Alcobaça e o futebol profissional. Estive um ano sem estar ligado ao futebol profissional. Estava no Polo Universitário, que é até aos Infantis, e acompanhava também os Iniciados, os Juvenis e os Juniores, no Polo da Academia, porque era o responsável pelos guarda-redes. Nessa altura, já via o investimento que os pais faziam na esperança de que o filho pudesse ser um Cristiano Ronaldo e cheguei a falar, várias vezes, com alguns deles, para explicar que não podiam estar a pôr tanta pressão nos miúdos, porque iam acabar, por mais tarde ou mais cedo, não gostar do Futebol, mas era muito difícil. Infelizmente, é uma realidade que ainda se mantêm atualmente e, possivelmente, até está pior.
Todos estes projetos trouxeram-me know-how. É o saber fazer. O que fazer e o que não fazer. Na altura, ainda não tinha 30 anos e já tinha estado no Real Madrid, nos “três grandes” de Portugal e “descascado” muitos treinos dos melhores treinadores que estão em alta neste momento. Acho que me deu uma bagagem grande para dizer: “se o outro consegue, eu também vou conseguir”.

AFCB: Além dos três clubes que referi anteriormente, em Portugal, passas várias temporadas no Ginásio Alcobaça, que já abordaste, e tiveste experiências no Carregado, Belenenses, Tirsense e Tourizense. Fala-nos um pouco destes anos…
BT: Exatamente. Entretanto, deixei o Sporting CP, apesar do interesse em que continuasse, uma vez que o meu foco era o futebol sénior. Nestes anos todos, continuava a ter a minha Escola de Futebol, em Proença-a-Nova – Futebol e Futsal, com 80 meninos e 30 e tal meninas -, portanto imagina os quilómetros fazia semanalmente. Quando acabei com a Escola, congratulo-me com o facto de muitos pais mostrarem tristeza pela Escola de Futebol acabar. Ainda assim, estava no Bahrein, não conseguia estar em todo o lado e, como não via aquilo como um negócio, mas sim uma oportunidade de ajudar os miúdos da minha terra, decidi acabar com o projeto. Até fechar a Escola foi verdadeiramente desgastante. Para mim, tudo é importante quando queremos ajudar, mas não conseguimos estar 24 horas atrás de 24 horas sem dormir, sem nos alimentarmos bem, sem descansar. Esses anos da minha vida foram muito intensos, muitos quilómetros, mas depois também acabas por ganhar um ritmo tão grande a resolver situações que dá-te um know-how e um background acima da média. Hoje vais para qualquer clube e onde eles veem um problema, tu já estás a encontrar a solução.
Após a saída do Sporting CP, tive a oferta para ir para a II Liga, que era o meu objetivo, e fui como adjunto – passei por duas equipas técnicas – para o Carregado. Gostei muito de trabalhar lá, abriu-me as portas da II Liga e do Futebol Profissional e fizemos um bom campeonato. Quando veio a chuva, o sintético piorou e quando enfrentas equipas com orçamento de oito milhões de euros e tu tens 30 mil euros, é muito complicado.
De seguida, fui duas épocas para o Belenenses, da II Liga, e fiz muita coisa no clube. Acho que tenho sempre a porta aberta, até porque as pessoas que lá estão se conheceram o meu trabalho, em que fui treinador principal e adjunto, mas também criei o Scout “Visão Black” - uma ideia parecida com o 611, um projeto de Scouting em que estive com o Antero Henrique e o Miguel Pinho, no FC Porto. Conseguimos contratar muitos jogadores das divisões inferiores e jovens para o Belenenses que, em termos financeiros, estava muito mal. Fizemos um brilharete, dadas as condições, e garantimos a manutenção na II Liga. Vou dar um exemplo. Isso também me deu algum know-how para precaver o que poderia acontecer em termos financeiros, uma vez que um treinador é um bocadinho de tudo e tens de saber gerir expectativas, principalmente com o mercado de transferências. Tens de perceber que o teu melhor jogador vai ter de sair, porque tem um ordenado muito alto, ou que vais ter de apostar num miúdo que ganha o ordenado mínimo e não pode apostar naquele que ganha mais. Muitas vezes as apostas dos treinadores, a nível profissional, têm de passar por jogadores que estão ali para vender, que precisam de jogar, e outros jogadores não podem jogar porque têm o ordenado muito avultado. Já não era só futebol dentro das quatro linhas, já eram outras coisas, mas felizmente conseguimos fazer um brilharete. É uma casa onde sou sempre bem recebido, já existiu possibilidades de voltar a Portugal para trabalhar lá, mas estou num patamar diferente agora.
Após esta experiência, em Portugal, estive no Tirsense e foi dos clubes que, não estando na II Liga, mais adeptos vi. Enchiam o estádio com cinco, seis, sete mil pessoas. Fácil. A malta do Norte tem um bairrismo incrível. Gostei muito de treinar o Tirsense, até estávamos a fazer um bom trabalho na II Divisão B. E a história como fui para lá, é engraçada. Na altura estava no Bahrein e tinha a oferta para renovar e tinha uma outra situação para outro país, também do mundo árabe. Venho de férias a Portugal e, no fim de semana, o Presidente Fernando Matos convidou-me para falar com ele. Não o conhecia, fui falar com ele e explicou-me que o projeto era dois anos, o primeiro era para manter e o segundo ano então para apostar na subida. Aceitei, mas esclareci logo que era eu que fazia a equipa. Isto foi numa sexta-feira. Na segunda-feira de manhã, o Presidente liga-me: “Ei, você é um homem cheio de sorte. - Então, diga lá, presidente – Já lhe contratei nove titulares – Mau. Mas quem é que faz a equipa? É você ou sou eu?”. Desses nove titulares, um tinha a mulher que trabalhava na Câmara Municipal e era para saber quando caia o subsídio. Era só coisas assim. Ou seja, esses nove jogadores que ele contratou, levaram o dinheiro e nenhum era titular. Começámos logo mal, mas ainda assim, eliminámos o União Leiria, para a Taça de Portugal, e acabei por sair no final da primeira volta, por opção minha e do clube – e até estávamos bem classificados.
Houve um jogo em que empatámos, mas até estávamos a realizar uma boa época. Estávamos em 5º lugar, o objetivo era a manutenção, e só perdemos um jogo, que foi o primeiro, contra o Vizela. Na altura quem estava em primeiro era Famalicão, Varzim e Vizela, todos com os mesmos pontos. O Felgueiras estava em 3º lugar e, logo a seguir, estávamos nós, a sete pontos da liderança. E tínhamos uma grande margem para as equipas que vinham atrás. Então, o Presidente vem ao balneário e, depois de empatarmos um jogo em que falhámos um penalti no último minuto, diz que tem um treinador da II Liga que diz que com esta equipa sobe de divisão. No calor do jogo, virei-me e respondi: “Oh Presidente só se for para subir à Senhora da Graça”. O homem não gostou e fizemos as contas e cada um seguiu o seu caminho. Aproveitei esse período para estagiar no Paços de Ferreira, com o meu amigo Paulo Fonseca, quase um mês, e fui para Omã, com um projeto melhor do que tinha no Bahrein, que me permitiu jogar a Liga dos Campeões da Ásia e a AFC Cup – equivale à Liga Europa -, e abriu-me muito mercado na Ásia. Neste momento, tenho mais mercado na Ásia do que em Portugal.